quarta-feira, 6 de maio de 2009

Os fantasmas do Araguaia

É estranho. O primeiro plano estratégico para gestão de uma bacia hidrográfica no País, aprovado há duas semanas pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (onde o governo federal, sozinho, tem maioria e pode impor seus projetos) é o da bacia Tocantins-Araguaia. E traz de volta velhos e surrados projetos para os quais numerosos cientistas já chamaram atenção, mostrando suas inconveniências e danos – como é o caso da hidrovia Araguaia-Tocantins, dos projetos de usinas hidrelétricas, da intenção de expandir o plantio de cana e da irrigação em geral em áreas problemáticas.

Washington Novaes

Na segunda-feira, neste jornal, o repórter Vinicius Jorge Sassine chamou a atenção para vários desses problemas, a começar pela já reduzida capacidade do Rio Araguaia de diluir os esgotos ali lançados sem tratamento em 130 pontos (só 8% dos esgotados na bacia são coletados e só 4% tratados). Não é melhor a situação na área do lixo (47% vão para lixões) nem do abastecimento de água tratada à população (16% não a recebem).
Muito grave é o retorno ao projeto da hidrovia Araguaia-Tocantins, que esteve na pauta na década de 90 e acabou deixado de lado, tantos foram os problemas levantados. Mas agora o ministro Carlos Minc o aponta como fundamental para a expansão do agronegócio na região, embora o próprio plano estratégico diga que em 55% da área da bacia há “alto risco de erosão das terras” (e também de assoreamento dos rios), por causa de desmatamento e uso inadequado do solo. Há décadas o brilhante geomorfologista Aziz Ab’Saber, da USP, vem alertando: a região do Araguaia e de outros rios do Centro-Oeste é de formação mais recente, ainda está em processo de acomodação; por isso, há um imenso cone invertido (de baixo para cima) de dejecção de areia, que muda o leito navegável do Rio Araguaia de ano para ano, com a movimentação de sedimentos. Estudos da Universidade Federal de Goiás, comandados pelo prof. Edgardo Latrubesse, há muitos anos já demonstraram que só por Aruanã passam 8 milhões de toneladas de sedimentos por ano. Uma parte deles vem desde a região das nascentes do Araguaia, onde estudos da profa. Selma de Castro, também da UFG, mostram o assustador avanço da voçorocas, em extensão e profundidade, com a colaboração decisiva do desmatamento nas encostas e topos de morro, para implantação de projetos pecuários. O prof. Tadeu Veiga, da UnB, chega a diagnosticar o início de um processo de desertificação naquela área.
Como pensar, então, em implantar ali uma hidrovia de alta capacidade de transporte? Como dragar durante séculos milhões de toneladas de sedimentos a cada ano para fixar um canal permanente de navegação? E onde se depositarão os sedimentos retirados? Mesmo que sejam transportados para outros lugares, qual será o custo? Quem o pagará? Essas questões vêm sendo levantadas desde o projeto inicial da Ferrovia Norte-Sul, que mostraram serem os custos de implantação e manutenção da hidrovia muito maiores que os da ferrovia e até de rodovias. Por isso mesmo foi feita a opção pela ferrovia, capaz de abrir um porto mais próximo para as exportações do Centro-Oeste. Mas aí está de volta a hidrovia que é o sonho das empreiteiras, pois terão trabalho durante séculos.
Não bastasse a hidrovia, o “plano estratégico” dá prioridade também a novas hidrelétricas. Primeiro, desconsidera estudos como da Unicamp, que mostram não precisar o País aumentar sua oferta de energia: pode economizar até 30% com conservação e uso eficiente (como fez no apagão de 2001); mais 10% com repotenciação de usinas antigas, de baixo rendimento, a custos muito menores; e mais 10% com redução de perdas nas linhas de transmissão (estamos perdendo 17%, contra 1% no Japão). Mas, ao lado das 60 usinas nucleares (!) previstas pelo ministro Lobão (inseguras, de energia mais cara, sem destinação para o lixo nuclear) e das termoelétricas (energia caríssima, altos níveis de poluição), estamos ameaçados por várias hidrelétricas no Araguaia-Tocantins. Entre elas as de Torixoréu-Baliza, Couto Magalhães e Santa Isabel. A primeira delas sepultaria sob as águas um dos lugares mais bonitos no mundo, por onde corre o Rio Encantado, formando várias cachoeiras e piscinas naturais (e por isso já foi criada ali uma área de proteção ambiental). A segunda, Couto Magalhães, também sepultaria todo um vale belíssimo, em Mato Grosso. Na terceira, Santa Isabel, um dos projetos cogitados deixaria sob as águas metade da Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo. Vários estudiosos têm mostrado também que as hidrelétricas inundariam áreas que deveriam ser preservadas e secariam outras, onde acontece a reprodução de peixes e outras espécies. Mas há13 hidrelétricas previstas para a bacia toda.
A expansão da irrigação, principalmente para plantio de cana no vale, é outra questão. Diz o ministro Minc que será feito um “zoneamento ecológico-econômico”, para escolher as áreas. Só que esse zoneamento vem sendo prometido há mais de 20 anos e não acontece. E a expansão projetada da área plantada é de 300% em 15 anos e da irrigação de 1.500% (hoje são 200 mil hectares irrigados no vale). Ao lado da cana, a previsão é de que o rebanho bovino no vale passe, até 2025, para 49,2 milhões de cabeças.
Como observou o superintendente de Recursos Hídricos da secretaria goiana do Meio Ambiente, Harlem I. dos Santos, “é estranho que se dê prioridade a um planejamento estratégico para o Araguaia-Tocantins e não para bacias hidrográficas com densidade populacional muito mais alta”. Como é estranho que um plano estratégico para aquela região não leve em conta seu maior potencial: o turismo (indústria que mais cresce no mundo), principalmente ecológico e cultural.Goiás precisa tomar posição.

Washington Novaes é jornalista
Fonte: www.opopular.com.br